quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Eu quero viver - Por Arfredo Bonessi

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Eu quero viver

Por Alfredo Bonessi

-ainda  hoje se sente o calor do fogo que aqui se deu naquela manhã de 28 de julho de 1938.   (Alfredo Bonessi – visitando a Grota de  Angicos 70 anos depois).

No entardecer do dia 27 de julho de 1938 , na grota de Angicos, Pedro chega com a mercadoria encomendada por Lampião.  Lampião está triste, acabrunhado, esquisito. Tinha recebido notícias que a Força tinha saído ao encalço dele pras bandas do Moxotó.  Já é noite e Lampião corta uma melancia e distribui entre Maria Bonita e Sila e após isso elas vão conversar em cima de uma pedra existente na subida do barranco, oposto a gruta, de frente a barraca de Lampião.



Maria se queixa de Lampião, da vida que leva, quer ir embora, largar a vida, mas Lampião não quer. Estavam de brigas, tinham discutido muito. Maria tinha cortado os cabelos. Daí Sila vê algumas luzinhas no alto do morro e pergunta a Maria o que é aquilo, aquelas luzinhas açula ?  Ela triste e pensativa responde que é vaga-lume. E só podia ser mesmo, porque naquela hora a volante estava com Joca, o delator,  bem distante dali. Maria ainda fala que não tem medo da volante de Alagoas, porque possui nela  um  parente. Sila diz que não tem medo da volante Sergipana, mas não explica por que. Separam -se cada uma vai para a sua barraca.



Anos depois, Zé Sereno, marido de Sila, afirma que naquela noite derradeira   Lampião e Pedro conversaram  dentro do mato, sozinhos até as 23 horas. Durval confirma isso. Pedro vai para casa, atravessa o rio de canoa. Chega em casa e pouco depois chega a polícia  para buscá-lo. Ele diz que não pode ir.


Teve tempo suficiente para pegar a canoa e atravessar de volta para o coito dos cangaceiros, ou mesmo avisar o irmão para que avisasse Lampião. Mas fica em casa, espera. A vida de Lampião está com as horas contadas. Minutos depois a polícia retorna, daí ele segue por  terra com o Cabo Bida  até onde está a volante. Chegando lá o Tenente Bezerra põe a mão no ombro dele e avisa: eu vim para te matar se você não me der conta dos cangaceiros. Pedro pensa um pouco e entrega tudo, mas não dá a certeza se os homens ainda estão lá na grota – precisa salvar a sua vida -  e,  temendo que o irmão esteja entre os cangaceiros e possa ser morto pela polícia,  indica a polícia o irmão que está do outro lado e para lá seguem. Chegando lá avisa o irmão  para que entregue tudo, porque está preso. Durval sem pestanejar confirma: estão lá sim, acabei de chegar de lá e a bem pouco eles estavam aqui pegando  bebida.  O fim de Lampião estava traçado.


O que não encaixa na história relatada posteriormente  por Durval era que o irmão estava com a camisa ensangüentada da ponta do punhal de João Bezerra, ou mesmo  com as unhas arrancadas. Esse relato é para minimizar uma possível ação posterior de vingança dos cangaceiros contra eles. Sabe-se que o Aspirante Ferreira queria matar logo Pedro, coisa que o Tenente Bezerra não deixou. Lógico, era uma estratégia policial para fazer com que ele desse no bico, pois os mortos não falam e Pedro morto não valia nada para a operação e a missão fracassaria. Depois foi a vez de Durval ser amedrontado. Segundo ele, o Aspirante deu uma tapa no lado do seu rosto que ele caiu no terreiro. Em outro depoimento diz que foi apenas empurrões e que o Aspirante queria logo matar a ambos no que João Bezerra saiu em defesa deles, em proteção. Cenas de artistas primários em picadeiros de  circo das periferias.  Por fim, com os objetivos traçados e a força avisada com quem iria brigar,  começam a subir o leito do riacho. Daí o Tenente Bezerra acende uma lanterna e foca a tropa que em coluna avançava, dá um sorriso e pensa consigo mesmo:  quantos daí vão morrer ? ora para quem vai enfrentar um número de cangaceiros superior ao número de seus comandados, e ainda em um  terreno desconhecido, a noite, sem saber onde estavam os inimigos e  acender uma lanterna  é uma atitude reprovável, criminosa, leviana, e inexplicável. Estaria avisando a alguém ?  Se a força estivesse em campo aberto  o foco da lanterna poderia ser visto a mais de um quilometro de distância, e uma saraivada de balas cairia sobre todos e a maioria morreria naquele momento ou ficaria ferida.  Outro fato acontecido nesse momento que foi relatado e hoje está escrito como verdadeiro é que o Aspirante estava bêbado, aponto de não parar em pé. Ora, para quem desce o Rio São Francisco a noite,  nas corredeiras, em três canoas amarradas,  podendo a qualquer momento bater em uma pedra  e ir ao fundo,  estar bêbado e equipado é muito contar com a sorte – é ser negligente demais, ou aventureiro mesmo, aqueles  das historinhas de gibis. Outro detalhe tido como verdadeiro: o Aspirante estava tão bêbado que não podia levar a metralhadora e  deu a  arma a um estranho para levá-la. Ora, dar a metralhadora para um paisano desconhecido, para levá-la, sabendo que ele poderia manobrar a arma e matar muita gente ali presente é demais para quem vai atacar um inimigo naquelas horas da madrugada.  O fato que bêbado ou não, foi o Aspirante e sua turma que deram fim ao Rei do Cangaço.


Ainda, para esse momento, e poucas horas antes, o mesmo depoente afirma categoricamente que o Tenente  que vai atacar Lampião tinha, ao entardecer, mandado pelo seu irmão, um saco de balas para Lampião. Não cola, não fecha. Não existe explicação enviar um saco de balas para quem você  vai atacar horas depois, mesmo porque o Tenente não estava em Piranhas, estava em Pedra, e Pedro comprou as mercadorias em Piranhas. Nessa cidadezinha estavamacantonadas  as volantes de Odilon Flor, da Bahia, e talvez  a volante de Bezouro,  também da Bahia.  Se o Oficial Comandante estivesse corrompido não iria atacar Lampião naquela  madrugada – atacaria no dia seguinte,  em plena luz do dia, para ser visto, ou  então mandaria uma aviso por algum informante a Lampião.


Entre tantas contradições há uma: que o Tenente não conhecia Lampião, foi conhecê-lo após a morte do cangaceiro, quando o mesmo já estava de cabeça cortada. Puro engano. Ambos eram conhecidos de muito tempo quando o Tenente, por ser agiota, estava afastado da corporação, e então se misturou ao grupo de todo o tipo de gente, caçadores, bandidos, cangaceiros e jogadores, daí então que aprendeu as manhas de lidar com a gente do sertão, incluindo aí os cangaceiros. Afirmam testemunhas  que o Tenente Bezerra jogou  baralho com Lampião – eu acredito nisso. Tanto é, que após a morte de Lampião, se embalando em uma rede no oitão da casa da fazenda do Tenente Zé Rufino, esse falou a aquele: como é rapaz, você foi matar o seu amigo ? – a que o Tenente respondera: é,  foi o jeito ! – quem viu, testemunhou e está escrito.  


Outra história bem verídica dessa amizade é sobre o cachorro de Lampião que aprisionado em combate pela força de Zé Rufino e entregue ao Tenente Bezerra em Piranhas, sessenta dias depois o animal estava na posse de Lampião.


Essa amizade antiga, esse conhecimento da vida cangaceira,  a troca de informações entre vários informantes, a atitude, o comportamento  proposital  aos olhos de todos, dando a impressão de apatia, desinteresse,  de ser conivente,  frouxo, tanto da parte dele como do Sargento Aniceto é que concorreu sobremaneira para o aniquilamento de  Lampião, porque com certeza Lampião sabia muito bem do temperamento de seu oponente e com isso negligenciou a segurança do grupo  e dele mesmo. Facilitou e pagou caro por isso.


Outra questão a ser  comentada é com relação ao bando de Corisco.  Lampião chegara na grota no dia 20 ou 21 de julho. Convocou todo o pessoal para uma reunião. Estava na posse  de uma fortuna , algo em torno de mais de R$ 750 mil reais em jóias (estimativas ao dia de hoje), cinco quilos de ouro,segundo alguns -   mas para encher duas bacias de rosto de jóias dão mais ou menos 2,5 quilos de ouro e não cinco. Somente se fosse ouro em barra, aí se poderia estimar esse peso de cinco quilos – analisando por esse lado, esse valor cairia para 350 mil reais. Em dinheiro sim, supomos, sem nenhuma informação,  que Lampião estivesse com valores bem acima de 500 contos de réis,  valores que daria para adquirir  hoje, 10 automóveis,  segundo uns, ao preço de 50 contos de réis um automóvel, outros dizem que não, um automóvel custava na época  8 contos de réis. Outros  calculam a correspondência entre as moedas: pega-se o conto de réis e divide-se por quatro, tem-se o valor em reais aos dias de hoje. O fato que uma fortuna estava na posse de Lampião naquela ocasião. Maria Bonita possuía 160 contos de réis, daria para comprar quatro fazendas. Luiz  Pedro estava com 360 contos de réis (estimativa), fora as jóias, daria para comprar  nove fazendas, sem contar os outros cangaceiros que foram mortos,  e mais  ainda,  aqueles que largaram tudo nas toldas e correram, abandonando o local. Era muito dinheiro.  


A volante se apossou de tudo e ninguém soube o destino em que foi parar  essa fortuna. Depois da refrega, quem seria doido de buscar explicações com o pessoal da volante sobre o paradeiro dessa riqueza em um tempo em que a polícia  fazia o que bem queria e um soldado da polícia mandava mais no sertanejo  que um Senador Romano no tempo de Júlio César  ?  Esses comentários  que foi o dinheiro que matou Lampião surgiu agora na década de 60 e somente  foi cogitado no século XXI quando os componentes da volante já não existiam mais.


Sobre o combate temos algumas observações que não fogem aos sentidos daqueles que já passaram pela vida da espingarda,  do deitar em poças da dáguase tirar um cochilo, sem antes deixar dois cabras de guarda, ou ainda, embora ter deixado dois cabras de guarda,  não dormir para ficar cuidando esses  dois cabras de guardas para não dormirem, ou então, tirar um cochilo com um calcanhar de um pé, em cima da ponta do  outro pé, para que caindo o pé de cima o sujeito acorde, dá uma olhada ao redor, escuta um bocado de tempo,  inverta a posição dos pés para voltar a dar um cochilo novamente.  Alerta, sempre alerta – pois  quem dorme em combate tem o pescoço cortado !


Subindo a força, sem um barulho sequer, sem um tropicão,  antes da encruzilhada dando de cara com os animais dos cangaceiros-  os animais se assustam, fazem barulho, o comandante gela da cabeça aos pés: acordaram os cangaceiros, é uma armadilha, caímos em uma armadilha, pensa ele. Silêncio. Ali próximo em sua tolda, Zé Sereno acorda com o barulho provocado  pelo animais. Tem vontade de levantar e ir ver o que está acontecendo. Escuta. Silêncio.  Vira para o lado e volta a dormir. A volante está em cima, menos de cem metros. Daí o Tenente divide o pessoal. O Aspirante, o bêbado, sai com Pedro e mais dezesseis homens para cruzar o riacho e cercar Lampião pela parte debaixo. Esses são os que matam Lampião, Maria Bonita, Quinta-feira e Mergulhão,  e talvez Luiz Pedro. Cabo Bertholdo desse com sua turma em direção a barraca de Lampião, bem em  frente a gruta, que está do lado oposto. O acabo Justino sobe, sobe muito,  para cruzar o riacho bem acima e de lá vir por detrás da gruta e cercar Lampião por aquele lado. Não participou da luta. Quando chegou ao riacho a luta já tinha acabado e os mortos já estavam de cabeças cortadas – esses soldados com certezas ficaram pobres, não levaram quase nada.   O Sargento Aniceto ficou bem abaixo, ou bem acima – até hoje ninguém sabe em que parte do riacho   ficou – sabe-se que ficou tapando a boca do riacho, ponto de fuga  dos cangaceiros – creio que não atirou em ninguém, não tomou parte na luta, na morte dos cangaceiros.  Ninguém vê seu nome escrito nos louros do combate.  O Tenente reservou para si a melhor tarefa. Subiu muito em ângulo de 30 graus a margem do riacho,  quase trezentos metros e daí veio descendo, sem antes recomendar que todos brigassem  em pé, e os ferrolhos ficassem abertos, quem deitasse podia se atirado e morto. Veio descendo e houve o primeiro tiro, daí a fuzilaria. Cangaceiros passaram por cima dele e de seu grupo. Ele metralhou muito a sua frente, recebia carregadores para a sua metralhadora e descarregava rapidamente......(em quem ?).  Já quase na margem passa fogo em Elétrico que estava dependurado na beira do barranco. Elétrico recebe a rajada e o fuzil escapa das mãos e ele sai rastejando de atrás da arma que desliza barranco abaixo. A volante cerca ele, e o Tenente pergunta quem é , de onde ele é ? – ele responde: pergunte a sua mãe que ela sabe quem eu sou. O Tenente retruca: eu ia te levar vivo, mas não vou ! – responde o cangaceiro; me levar vivo ? se você me levar vivo eu vou te matar debaixo de tua cama  e xinga o Tenente. O Tenente ordena: mate essehomem ! – um soldado volante vem com a faca e pá, pá, pá, pá e o cangaceiro não morre  e o Tenente reclama: bando de covardes, vocês são covardes – quem mandou esfaquiá esse homem ? se ele estivesse bem eu ia deixar  ele lutar com vocês  para ver se vocês são homens mesmo !


Quando o Tenente chega em baixo, Lampião ainda se estrebucha. Mergulhão ainda responde: sou.....do........poçoooooo e morre !  O Tenente senta numa pedra. Lampião de lado, recebe um  tiro  na cabeça e coronhadas que lhe esmagam o craneo . Um soldado ainda alerta outro: não estrague a cabeça, não sabe que é pra cortar !


Do outro lado do Rio, ao amanhecer,  Corisco pronto para a travessia  escuta o tiroteio. Dadá pergunta o que é,  ele responde: é no sítio de cumpadreLampião.  Escuta-se  um derradeiro tiro, isolado, final,  e Corisco comenta: é algum baliado que tão acabando de matá.  Sobre esse tiro muitos estudiosos afirmam que foi em Luiz Pedro; outros dizem que foi na cabeça de Lampião; outros dizem que foi no cachorro de Lampião. Outros afirmam que foi em Mergulhão – ninguém sabe ao certo. 


Comentários  dizem  que quem matou Luiz Pedro foi Mané Véio. Luiz Pedro estava saindo, subindo o barranco quando Mané Véio atirou no meio da barriga dele. Outros dizem que não, que Luiz Pedro e Balão estavam tentando pegar o ouro de Lampião e que várias tentativas foram feitas por ambos, até que Luiz Pedro foi e não voltou mais. Eu fico com essa versão. Outro afirmação dão conta que Maria Bonita, ferida,  ainda gritou para Luiz Pedro, lembrando o juramento prestado quando da morte de Antonio Ferreira, sobre o compromisso de que no dia que Lampião morresse ele morreria também. Não acredito nisso, Maria estava com dois tiros  e em seguida perdera os sentidos prova está que caiu e não se mexeu mais. Quem dormia no interior da gruta era  Quinta-Feira, segundo a cangaceira  Sila, um velhinho. Ele morreu por ali mesmo. Mas teve um cangaceiro em que a polícia atirava e ele corria para um lado e para outro, acabou  caindo e ficou com o pé em cima de uma pedra e ainda dando com a mão, isto é fazendo sinal com a mão.  Para mim esse é Lampião. Outros dizem que é Mergulhão, outros dizem que essa é Maria Bonita que ficou fazendo sinal com a mão atrás de uma pedra. Mas declarações de alguns policiais dão conta que cessado o tiroteio a força passou entre Maria Bonita e Lampião que estava caídos. Nunca saberemos ao certo.


O fato que após  o combate a tropa seguiu  rio acima e Corisco avistou a força subindo. Nesse exato momento o sangue de seu cumpadre e mais dez cangaceiros  corria por entre as pedras  e  penetrava no chão duro da grota de Angicos. Corisco poderia ter dizimado toda a volante,  pois era um alvo fácil as três canoas subindo lentamente o rio,  e os soldados remando com muita dificuldade. Corisco ficou escondido e procurou saber do resultado da luta. Se abrisse fogo, o tesouro que a polícia conduzia, dinheiro, ouro e as cabeças dos cangaceiros,   hoje estariam  depositados  no leito profundo do Rio São Francisco,  juntamente com as carcaças dos soldados. Corisco ainda procurou Joca,  coitero seu,  para troca de informações e pede a ele que faça algumas compras. Joca acusa o vaqueiro Domingos  da morte de Lampião e avisa o Sargento Aniceto sobre Corisco  e ambos fazem uma tocaia para  o cangaceiro e seu bando,  que não comparecem e  escapam da morte certa.   Corisco,  a noite,  chega na casa de Domingos e sem falar nada sobre o fato, mata cinco pessoas da mesma família. Se tivesse dialogado, interrogado  o vaqueiro,  com certeza Joca  não teria morrido de velho na cama. Alguns ainda acham que Corisco e Lampião naquela ocasião estavam de amizades azedas pelo assassinato de Cristina de Português, porque a mulher foi  mandada embora para a casa dos país e Luiz Pedro, Juriti e mais outro cangaceiro,  Candeeiro,  cercaram a moça já em viagem e a matam a punhaladas, tudo isso com a aprovação de Maria Bonita, sua  amiga.  Na ocasião, Corisco ao ouvir o mugido triste dos animais ainda fez  uma privinição:  que tristeza essa !  que mugidos tristes, parece que está tudo se acabando ! – dito e feito, trinta dias depois morre Lampião, Maria Bonita e Luiz Pedro e anos depois, Juriti acaba morto,  queimado vivo em uma fogueira pelo Sargento  De Luz.


A busca maior pelos estudantes do tema  é saber  o  que ocorreu depois da luta em Angicos.   Ainda de madrugadinha, deixando o Tenente Ferreira com as armas apontadas para Lampião e Maria Bonita, Pedro deu no pé. Chegou em casa e abriu o jogo com os  familiares  que  preocupados com Durval,  de dezoito anos,  que ainda  não ainda voltara do cimo do  morro,  estavam aos prantos.  Durval fica até o final da luta e assiste a tudo, até que o Cabo Bida dá uma alerta  a ele:  dê no pé porque agora os soldados vão brigar entre si pelo dinheiro dos cangaceiros – o que ele faz em seguida, dá no pé. No rumo de casa ainda passa por uma roça de melancia, abre uma  e sai chupando. Seu espírito alegre ainda aproveita para dar um susto na família aflita, e faz gemido deassobraçãouuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh para todos, como se estivesse chegando de uma festa de São João.  A tarde volta agruta com Pedro, mas houve um barulho no mato e pensando ser cangaceiros,  ambos  saem correndo:  é a volante de Bezouro  que chega  ao coito destruído. 


Depois de três dias, pelo que se tem notícias Pedro volta a gruta com a Polícia Científica e aponta todos os cadáveres putrefatos. Lampião é uma chaga só e de seus nervos e tendões escorre um líquido cor de cobre. Fora deixado  da cintura para baixo e castrado. Maria Bonita é uma chaga só, toda picada pelos urubus, mas há um detalhe, resta uma mãozinha branca, delicada, parece uma louça, que impressiona a todos. Fora deixada com um galho de mato enfiado na vagina.  Após a identificação dos cadáveres  a polícia sepulta Lampião, Maria Bonita, Luiz Pedro, Quinta-Feira e Mergulhão e talvez Elétrico, por acaso,  no mesmo buraco onde haviam sido enterrados os dejetos dos animais que os cangaceiros mataram  para se alimentarem  naquela semana -  para mais de 47 bodes, segundo Durval.


Em cima do corpo de Maria Bonita é colocado  por um policial, uma garrafa, acredita-se que seja de álcool ou de cerveja.  A fedentina insuportável  que se fazia sentir já  com um quilômetro de distância quando a Polícia caminhava em direção ao local do combate, agora,  era  misturada  a podridão das carcaças dos animais. Muitos soldados vomitam  sem controle. Cinco dias após a chacina  é a vez do Tenente Ferreira retornar ao coito, desta vez em reportagem com os jornalistas do Rio de Janeiro. Encontram os corpos insepultos dos cangaceiros, batem fotos,  e vão se embora. O coito ainda é um pandemônio, dando a impressão que um furacão varrera aquele local fatídico. 


Pedro morre dois anos depois e Durval morreu a pouco tempo em avançada idade. Ninguém se lembrou de perguntar a ele que fim levaram os ossos dos mortos e mesmo, quantas vezes após  a luta  ele ainda voltou aquele lugar -  ou nunca mais voltou ?  não é crível que ele não saiba o que aconteceu naquele  lugar depois da morte de Lampião. Sabe-se que no mesmo dia da luta, a tarde, Odilon Flor chegou ao coito de Angicos, e ao ver os cadáveres de Lampião e Maria Bonita  chorou. Choro  esse que não se pode avaliar agora, se foi de alegria, se foi de frustração  pelo feito  não ser obra sua, choro de final de campanha, choro porque a guerra no sertão tinha acabado, choro de despedida,  choro de saudades dos amigos que morreram na luta,  choro pelos sofrimentos que passou, pelo cansaço, pelas pessoas que sofreram mortes horríveis nas mãos dos cangaceiros,  choro pelo horror que presenciou ante as vítimas  deixadas nas passagens do cangaço pelo chão sertanejo. Não se sabe.  


O Coronel Lucena,  Chefe Geral da Polícia depois do comandante, Capitão Teodoreto Camargo, do Exército,  estava em Santana de Ipanema, sede geral da volante,  tomando uma sopa, na casa de um amigo, quando o telegrama dando noticias da morte de Lampião e mais dez cangaceiros chegou as suas mãos: ele também chorou.


No fundo daquele grotão, no dia 28 de julho de 1938, ao meio dia,  tudo  estava consumado.   Mais de vinte anos de lutas, sofrimentos, castigos, mortes, dores, prantos,  conchavos, calúnias, intrigas, planos, projetos, esperanças, sonhos,  furtos, roubos,  sede, fome, aflições, irritações, ódios, enganos, engodos, artimanhas, ciladas, armadilhas, suspeitas, injustiças, sangramentos e  suplícios -  tudo foi lavado pelo sangue que  escorreu dos corpos  das vitimas naquela  decisiva e derradeira batalha entre o bem e o mal.  


A  vegetação espinhenta  contrastando com o chão duro e pedregoso daquele lugar horrível, ainda hoje,   mais  parece  a entrada do inferno-  e   a gruta escancarada,  parece ser a  boca do próprio  demônio,  que se abriu em  gargalhadas sinistras para  as 12 vítimas da morte   naquela manhã - número mágico  dos signos do zodíaco, número  dos meses do ano,  número dos apóstolos  de Jesus  - início de novos tempos e  o fim de uma maldita era – a era do cangaço !


O  som  de uma voz feminina  ainda ressoa  vagamente pelo leito do riacho, beija uma árvore aqui,  beija uma pedra ali,  beija uma estrela  no fundo do céu, retorna a terra em forma de sereno da noite, cai ao solo em forma de  lágrimas de saudades em  pingos de chuvas em madrugadas  sem fim: Maria Bonita olhando de lado, a noite, véspera da morte, muito triste,  faz  um lamento  ao destino cruel e  passa de leve, quase um carinho, a mão  sobre a laje  fria na qual  está sentada e que em breve fará parte do seu túmulo -  conversa com ela,  sussurra docemente  para a pedra  que a escuta  indiferente:  eu queria tanto que esse homem largasse essa vida ! 


Alfredo Bonessi é membro da SBEC-Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço e pesquisador.


*Recebi por e-mail


Saudações Virtuais



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